12 de setembro de 2008

A depressão pós-parto em Boris Vian

« «Como me sinto inquieta», pensou Clementina, debruçada à janela.
O jardim doirava-se ao sol.
Não sei onde eles estão, o Noël, o Joël ou o Citroën. Podem, entretanto, ter caído ao poço, ou comido alguns frutos envenenados, ou apanhado com alguma seta num olho, se algum outro miúdo anda a brincar no meio da estrada com um arco, ou podem ter sido contaminados pela tuberculose, se algum bacilo de Koch se meteu de permeio, ou terem perdido os sentidos, se cheiraram alguma flor de perfume muito intenso, ou terem sido picados por um escorpião trazido pelo avô de algum garoto da aldeia, algum célebre explorador que tenha chegado há pouco da terra dos escorpiões, ou terem caído de uma árvore abaixo, ou corrido, depressa demai e partido uma perna, ou brincado com a água e afogado, ou descido a falésia e estampado e quebrado a espinha, ou arranhado nalgum arame ferrugento e apanhado o tétano; foram até ao fundo do jardim e viraram uma pedra, debaixo da qual havia uma pequena larva amarela que vai desenvolver-se num abrir e fechar de olhos, e voar em direcção à aldeia, e introduzir-se no estábulo de um touro bravo e picá-lo no focinho; o touro sai do estábulo, deita tudo abaixo, e ei-lo que mete pernas ao caminho, em direcção a esta casa, vem de lá como doido, deixa tufos de pêlo negro em cada curva, presos às moitas de uva-espim; e, mesmo em frente de casa, lança-se de cabeça baixa contra uma pesada carroça puxada por um cavalicoque meio cego. Com o choque, a carroça desmantela-se e um pedaço de metal é projectado no ar a uma altura incrível; possivelmente um parafuso, uma cavilha, uma porca, um prego, um ferro do varal, um gancho de ligação, um rebite das rodas, que foram carpinteiradas e depois quebradas, e reparadas mediante cinchos de freixo talhados à mão, e esse pedaço de ferro sobre, silvando, em direcção ao azul do céu. Passa por cima do gradeamento do jardim, e oh meu Deus, vai cair, vai cair e, na queda, aflora a asa de uma formiga voadora, arrancando-lha, e a formiga, mal dirigida, perdida a estabilidade, vagueia por sobre as árvores como uma formiga que já não presta, e tomba, de repente, sobre a relva onde, Deus meu, está o Joël, o Noël e o Citroën, a formiga cai em cima da bochecha do Citroën e, deparando, possivelmente, com uns restos de doce, pica-o...
— Citroën! Onde estás tu?
Clementina precipitara-se para fora do quarto e gritava, fora de si, enquanto descia as escadas a galope. No vestíbulo, esbarrou com a criada.
— Onde é que eles estão? Onde estão os meus filhos?
— Estão a dormir — respondeu a outra, com ar de espanto. — É a hora da sesta.»
(Boris Vian, O Arranca Corações)

3 comentários:

Supertatas disse...

ahhhhhhhhhhhhhh esse é o melhor dele!!

lavandaria disse...

daqui sai 1 voto para "a espuma dos dias""!
e beijos para todos

BE disse...

Estou com a Rita, o Arranca Corações é bom, mas nada ultrapassa a Espuma dos Dias :')